quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Falta conhecimento para aplicação do Direito Internacional

Para o vice-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, juiz Roberto de Figueiredo Caldas, a falta de conhecimento por parte de juízes e advogados brasileiros dificulta a aplicação do Direito Internacional e dos direitos humanos no Brasil. Ele conta que é preciso que a jurisprudência da Corte Interamericana seja mais estudada pelos profissionais do Direito. Ele fez uma palestra sobre o tema na sexta-feira (6/12), na Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).
“Os advogados em geral precisam voltar os seus estudos, as suas vistas, os seus objetivos à integração da matéria direitos humanos ao seu trabalho. Porque as normas de direitos humanos já ratificadas pelo Brasil estão internalizadas, elas são plenamente aplicáveis ao Brasil como quaisquer outras leis e, sendo de direitos humanos, elas têm uma estatura maior que a lei, como atualmente reconhece o Supremo. Ou seja, aqueles tratados de direitos humanos têm uma natureza de nível constitucional, têm uma relação materialmente constitucional e, portanto, é muito importante que os advogados conheçam e argumentem com direitos humanos”, afirmou.
Em sua exposição, Caldas mostrou dados de uma pesquisa de 2008 feita pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que investigou o grau de efetivação dos direitos humanos na prestação da tutela jurisdicional e o grau de familiaridade dos magistrados daquele tribunal com esses direitos. A pesquisa mostra que falta conhecimento do tema por parte dos juízes. 
A pesquisa mostra que 84% dos juízes e 79% dos desembargadores não cursaram uma matéria específica sobre direitos humanos na graduação; 59% dos juízes e 43% dos desembargadores afirmaram conhecer superficialmente os sistemas de proteção da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA); 28% dos desembargadores e 20% dos juízes informaram que não conheciam o funcionamento dos mecanismos internacionais de proteção; 50% dos juízes e 54% dos desembargadores não acreditavam que o conhecimento das decisões internacionais poderia auxiliar e enriquecer suas sentenças.
O juiz mencionou também a necessidade de conhecimento da jurisprudência da Corte Interamericana. De acordo com ele, para facilitar a divulgação no Brasil a CIDH firmou um convênio com o Ministério da Justiça para traduzir sentenças. “Isso é muito importante porque torna mais fácil e acessível aos advogados e à comunidade jurídica nacional. Por enquanto, a pesquisa pode ser feita no site da Corte Interamericana [www.corteidh.or.cr]. Acabamos de inaugurar um buscador de jurisprudência nos moldes do que temos no Supremo e nos tribunais superiores, por meio do qual as pessoas vão poder desenvolver o estudo sobre a jurisprudência da Corte”, explicou.
Roberto de Figueiredo Caldas falou também sobre as expectativas da Corte Interamericana para o próximo ano: “A perspectiva para 2014 é que a Corte e as suas decisões, sejam mais divulgadas em alguns países especialmente, como o Brasil, onde de fato o Judiciário, os advogados e a comunidade jurídica em geral não citam muito a Corte. A perspectiva é de maior difusão e maior participação dos estados também no financiamento da Corte. Hoje a Corte sobrevive com doações de países europeus, quase metade do seu orçamento vem de doações. Nós achamos que isso não é bem apropriado, pois, sendo uma Corte do continente é o continente que deve dar a ela o suporte necessário. É um orçamento muito pequeno, e isso eu acredito que nós alcançaremos em 2014”, concluiu.
Além do juiz Roberto de Figueiredo Caldas, integraram a mesa de abertura o diretor cultural da Aasp, Luís Carlos Moro, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), Marcos da Costa, o conselheiro da Aasp e coordenador da Revista do Advogado, Roberto Parahyba de Arruda Pinto, e o presidente da Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (Abrat), Antônio Fabrício de Matos Gonçalves. Com informações da Assessoria de Imprensa da Aasp.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

“Na América Latina as pessoas já sentem que têm direitos e podem exercê-los”

Diego García-Sayán reexamina seus quatro anos de gestão e defende a necessidade de que a Corte se volte para casos de profundidade nos quais possa firmar jurisprudência


O peruano Diego García-Sayán termina em 31 de dezembro seus quatro anos à frente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e se deslocou até Washington para entregar na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA) um informe extraordinário sobre sua gestão na presidência que pretende ser um balanço da evolução do tipo de casos com que lidou no tribunal ­ – com sentenças históricas sobre os direitos dos homossexuais e a fecundação in vitro – e do crescente vigor de uma Corte cuja jurisprudência começa a ser vinculante nos ordenamentos nacionais.
Ao longo desses quatro anos, García-Sayán lidou com o peso de dirigir o tribunal internacional com menor orçamento do mundo; teve de aplicar a tortuosa reforma do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH); acompanhou a denúncia da Convenção Americana por parte da Venezuela – o que significa que esse país está fora da jurisdição da Corte – e foi duramente questionado pela sentença no caso Mémoli vs Argentina, que muitos viram como uma mudança perigosa, com intenções políticas, na jurisprudência da Corte sobre a proteção da liberdade de imprensa.
Com a experiência e a bagagem de seus anos na magistratura e na vida pública – foi ministro da Justiça e chanceler do Peru –, García-Sayán defende com veemência e, sobretudo, com convicção um mandato de que se sente orgulhoso e passa ao largo com diplomacia assuntos que a corte poderá estudar em breve, como a destituição do prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, que esta semana irá a Washington para apresentar seu recurso perante a Comissão Interamericana de Direitos Humano (CIDH), o seu futuro pessoal, que alguns situam à frente da OEA ou de outros órgãos regionais.
Pergunta. O que destacaria do informe que na quarta-feira vai apresentar ao Conselho Permanente da OEA?
Resposta. Em primeiro lugar, o modo como o SIDH está tratando de uma gama cada vez mais variada de temas que, em outro contexto do sistema interamericano, teriam parecido esquisitices ou sutilezas, se comparados com as matanças ou desaparecimentos, os casos que mais se estudavam havia alguns anos. A avalanche de denúncias pressupõe a multiplicação da demanda democrática e esse é um fator que contribui para a saúde do sistema democrático porque significa que os cidadãos sentem que têm direitos e que podem exercê-los.Isso é uma revolução na relação entre o indivíduo e o Estado. Além do mais, há um fortalecimento notável das instituições nacionais que descobrem que ao se nutrirem do SIDH se apoderam de mais armas de jurisprudência para a proteção de direitos humanos. No México, Colômbia e Peru nossa doutrina é vinculante, o que permite a seus juízes resolverem casos que, de outro modo, acabaríamos tendo de analisar na Corte.
Paz com as Farc e a destituição do prefeito de Bogotá
A justiça de transição é perfeitamente compatível com a Corte porque faz parte de sua jurisprudência"
P. A Colômbia é precisamente um país muito respeitador do SIDH. No entanto, seu presidente, Juan Manuel Santos, pediu há algumas semanas à OEA e à Corte flexibilidade e respeito ao processo de justiça de transição para resolver de modo interno as violações de direitos cometidas pelas Farc, para não ameaçar o êxito do processo de paz. Qual a sua opinião, como presidente da Corte?
R. A justiça de transição é perfeitamente compatível com a Corte porque faz parte de sua jurisprudência desde o caso Mozote, o único caso de anistia vinculado à saída negociada de uma guerra que este tribunal conheceu. Ali se expõe um desdobramento da justiça de transição como um processo triangular no qual se combinam a justiça, a verdade e a reparação, um processo no qual a ponderação desses três componentes pode ir gerando respostas que façam com que a justiça não seja um fator que impeça a paz, mas um fator que a fortaleza.
P. O prefeito Petro pediu a Santos que, tal como contempla a Constituição colombiana, solicite um parecer consultivo à Corte sobre a interpretação da proteção dos direitos políticos. Caso ele fízesse isso – o ministro da Justiça já disse que não – o que o tribunal lhe responderia?
Na jurisprudência da Corte está estabelecido que para o exercício dos direitos políticos vigoram plenamente as normas fixadas na Convenção, incluídas as que correspondam à sua limitação e suspensão"
R. Todos os Estados têm a faculdade de apresentar uma solicitação de opinião consultiva. Se fosse apresentada, a Corte teria de considerá-la, mas esse não é um processo de poucas semanas, é um processo em que a Corte tem de velar para que haja o maior número de avaliações e de opiniões, para que não se transforme em um fórum sagrado.
P. Petro argumenta que a decisão do procurador sobre a destituição dele é uma violação dos direitos políticos reconhecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos. No caso do venezuelano Leopoldo López, a Corte decidiu que as normas internas não poderiam prevalecer sobre a legislação internacional em se tratando de cargos preenchidos por eleição popular e que somente um juiz poderia destituir uma pessoa que ocupasse um posto desse tipo, depois de um processo com provas suficientes. Essa sentença poderia ser aplicada como jurisprudência no caso do prefeito de Bogotá?
R. Teria de ser estudado, porque cada caso tem mérito em si mesmo e, no momento, não conhecemos um caso essencialmente igual ao de Petro. Mas na jurisprudência da Corte está estabelecido que para o exercício dos direitos políticos vigoram plenamente as normas fixadas na Convenção, incluídas as que correspondam à sua limitação e suspensão. Em todo o caso, conhecendo o vigor e o dinamismo da institucionalidade colombiana, estou certo de que saberão encontrar uma saída que compatibilize um processo disciplinar efetivo contra as autoridades, eleitas ou não, com a garantia dos direitos políticos das pessoas que foram eleitas para um cargo público.
Saída da Venezuela
O prejuízo não é tanto para a Corte ou para a CDIH, mas para os cidadãos que vivem na Venezuela. Mas isso também não é o fim do mundo"
P. Como afetou a Corte a saída da Venezuela de sua jurisdição, depois que se tornar efetiva sua decisão de renegar a Convenção?
R. A Venezuela estava em seu direito ao renegar a Convenção, mas esse gesto não teve maiores repercussões quanto a ter um efeito dominó, como chegou a ser prenunciado. O prejuízo não é tanto para a Corte ou para a CDIH, mas para os cidadãos que vivem na Venezuela. Mas isso também não é o fim do mundo. Há muito países membros da OEA que não estão nem nunca estiveram submetidos à Corte e isso não é nem nunca foi a antessala do inferno.
Liberdade de expressão
Se alguém se submeteu a um caso que não saiu como queria, está em seu direito divergir, mas daí a dizer que houve mudança de jurisprudência ou que se atacou a independência dos juízes há uma distância"
P. Na sentença Mémoli vs Argentina (os proprietários do diário argentinoLa Libertad foram condenados a penas e prisão e embargo de bens por denunciar em dois artigos as irregularidades na venda de jazigos por parte do cemitério e de uma sociedade mutuária) este verão, a Corte considerou pela primeira vez que uma condenação penal por difamação não afetava a liberdade de expressão. A sentença foi duramente criticada por organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch, que chegou a dizer que a Corte “havia tirado pelas bordas a jurisprudência sobre liberdade de expressão”, e a relatora para a Liberdade de Expressão da CIDH, Catalina Botero, que alertou que com a resolução “se deixava sem defesa os jornalistas regionais”. Qual a sua opinião?
R. Aí há um erro porque não houve mudança na jurisprudência. Creio que esse é um tema muito raro, é uma tormenta em um dedal de água, porque o Estado foi condenado e os Mémolis, no dia seguinte, deram como manchete de seu jornal: Ganhamos, a Argentina perdeu. Haverá outras pessoas que interpretarão melhor que as vítimas quem ganhou ou perdeu, mas a sentença condenava a Argentina por violação da Convenção e estabelecia que fosse removido o congelamento de bens decretado contra os Mémolis, que era a parte essencial do processo, porque a sentença penal nunca chegou a se tornar efetiva. É preciso rever essa afirmação. Se alguém se submeteu a um caso que não saiu como queria, está em seu direito divergir, mas daí a dizer que houve mudança de jurisprudência ou que se atacou a independência dos juízes há uma distância.
P. Há também quem insinue que por trás dessa sentença há certa intenção política para obter o favor da Argentina para potenciais apoios a futuros cargos.
R. Qualquer insinuação de favoritismo político me parece inaceitável, principalmente porque, no essencial, o Estado argentino foi condenado.
Futuro num organismo internacional
P. Dois órgãos de mídia, La Razón, do Peru e Semana, da Colômbia, informaram na última semana que o senhor tem intenção de apresentar sua candidatura à OEA ou outro órgão regional, e conta com o apoio do presidente Ollanta Humala. O que está certo nessas afirmações?
há alguns que foram mais inusitados porque saem da inércia de casos anteriores, como o de não discriminação por orientação sexual ou o da fecundação in vitro , porque através deles você mexe com a sensibilidade e a realidade de muitos milhões de indivíduos"
R. Se Humala decidisse apresentar a minha candidatura, tenho certeza que primeiro ele me consultaria.
P. Se ele lhe pedisse, aceitaria?
R. Como dizem na Colômbia, amanhecerá e veremos. Fala-se dos problemas quando eles se apresentam. Não existe nada, e tudo o que se está falando é mera especulação.
P. O que o atrairia?
R. Não parei ainda para pensar. Estive tão dedicado á presidência que o que tenho de começar a fazer é posicionar-me no exercício da função de advogado e consultor. Provavelmente os outros estão pensando mais em meu futuro do que eu mesmo, o que é bom porque me ajuda a pensar no que poderei fazer depois.
Futuro da Corte e do SIDH
P. De que sentença se sente mais orgulhoso em sua permanência como presidente da Corte? Qual sentença que sentiu que seria um marco na jurisprudência latino-americana?
Eu não posso dar à CIDH nenhuma sugestão ou instrução sobre o que eles têm de fazer, mas é útil que se leve em conta que, para um tribunal que nunca será estatisticamente relevante sempre será interessante explorar áreas inusitada"
R. É difícil porque todos os casos têm um elemento de novidade fundamental. Mas há alguns que foram mais inusitados porque saem da inércia de casos anteriores, como o de não discriminação por orientação sexual [caso Atala vs Chile] ou o da fecundação in vitro [caso Artavia Murillovs Costa Rica], porque através deles você mexe com a sensibilidade e a realidade de muitos milhões de indivíduos que hoje em dia, se têm uma violação a seus direitos, se são discriminados por sua orientação sexual, têm aí um elemento fundamental de defesa embora a lei de seu país diga outra coisa. O efeito que isso pode ter na afirmação dos direitos é importante e enormemente esperançoso.
P. É nesse tipo de caso de grande profundidade que a Corte deveria se concentrar no futuro, para fomentar sua transcendência e torná-la mais incisiva?
R. Eu não posso dar à CIDH nenhuma sugestão ou instrução sobre o que eles têm de fazer, mas é útil que se leve em conta que, para um tribunal que nunca será estatisticamente relevante sempre será interessante explorar áreas inusitadas, áreas sobre as quais a Corte ainda não se pronunciou e a cuja jurisprudência os Estados podem recorrer.
P. A CDIH lamenta que a Corte esteja desconsiderando cada vez mais casos que lhe envia e, por outro lado, o tribunal e muitos juristas se queixam da lentidão con que a Comissão resolve as denúncias apresentadas. O qu podem fazer ambos organismos para conseguir maior coesão, dinamismo e coordenação?
R. Não há uma crítica de minha parte à CIDH e, se a CIDH tem alguma crítica à Corte, não conheço. Mas cada qual tem as próprias especificidades, são órgãos autônomos e assim têm de continuar sendo. Este ano, depois de muitos outros, tivemos uma reunião plenária entre os membros da CIDH e a Corte. Ali não se falaram de casos mas se definiram, sim, alguns passos em matéria de regulamentação que foram acolhidos. A comunicação é melhor e acredito que neste último ano a CDIH compreendeu que falar de reformas era sinônimo de debilidade e que é normal que toda a instituição esteja aberta ao diálogo e à mudança. Quando a CIDH saiu do esquema pré-histórico, que considerava que qualquer um que falasse ou pusesse em discussão seus procedimentos estava atacando a CIDH, muitos Estados começaram a dar suas opiniões, demonstrando que não existia essa espécie de avalanche monocórdica de que todos estavam contra.

FONTE: 
http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/17/internacional/1387311940_520992.html

domingo, 8 de dezembro de 2013

A mágica da conciliação

Nelson Mandela evoca uma inspirada e extensa coleção de juízos e sinônimos. Conciliação é o preferido, embora pacificação, convergência, concertação, sinergia, bonomia, tolerância e concórdia tenham aparecido com igual frequência nas homenagens. Apesar da leveza que sugerem, são missões igualmente árduas, difíceis de arrematar.
O conciliador é um radical. A arte do possível – definição que, por comodismo, deu-se à política – é espinhosa, pressupõe o gerenciamento de impulsos opostos, instintos contrastantes, naturezas incompatíveis. Ao desafiar tantos absurdos e improbabilidades, se não for determinado, o conciliador ficará fatalmente no meio do caminho.
Só os obsessivos, obcecados e obstinados sabem como resistir aos atalhos, desvios e à sedução das facilitações. A fabricação do entendimento – uma dos anseios mais complexos da condição humana – exige um gênero de firmeza próximo da irreflexão, uma audácia capaz de confundir-se com delírio. Também a coragem dos suicidas. Não é tarefa para diletantes e impacientes.
É um passe de mágica, uma complicadíssima alquimia capaz de transformar fogo em frescor, aço em seda, crispação em sossego. Completada a conciliação, na euforia da paz, a inevitável pergunta: por que não a tentamos antes? Simplesmente porque não apareceu alguém apto perceber que era a única alternativa. As demais presumiam a gangorra das revanches e a continuação do horror.
Antídoto universal
A conciliação perseguida por Nelson Mandela ao longo de 75 dos 95 anos em que viveu não se resume ao capítulo racial. Foi adiante ao completá-la com a busca por uma conciliação política ou, em outras palavras, pela desideologização do ideal humanista. O ex-comunista que se preparou para pegar em armas, percebeu que não era a solução.
A luta contra apartheid sul-africano universalizou-se graças ao suporte multipartidário, multirreligioso, multicultural e midiático que Mandela conseguiu mobilizar em seu país e no mundo.
O desmanche do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, é geralmente tomado como o fim da Guerra Fria. A libertação de Mandela cerca de três meses depois, em 11 de fevereiro de 1990, varreu a Guerra Fria do âmbito global.
A origem do totalitarismo encontra-se em rancores individuais, no âmago das almas, advertiu Hannah Arendt. Acrescentou o “Madiba” Mandela: a democratização de um país só se completa com a erradicação dos ressentimentos.
No flagrante feito ao sair da prisão depois de 27 anos confinado, o líder rebelde ainda exibia o punho cerrado, mas o braço não estava esticado. A partir de então as mãos foram abaixando, usadas preferencialmente para abraços, saudações, palmas e para acompanhar suas músicas.
Mandela não foi um sucesso como presidente; Barack Obama também não. Ambos, porém, foram decisivos para enfrentar o radicalismo, o fundamentalismo e o extremismo. Estes são os venenos que impedem o progresso. A mágica da conciliação – e não a ciência ou a política – é o seu único antídoto.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Corte interamericana em Brasília: uma derrota do provincianismo

Deisy Ventura e Renan Quinalha - 29/11/2013 - 15h47

No dia 11 de novembro, vimos uma imagem inusitada do plenário do STF (Supremo Tribunal Federal): o formato tradicional das três mesas em “u” deu lugar a um grande quadrado. Em face dos magistrados brasileiros, a quarta mesa acolhia os juízes da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos).



O presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa, definiu o encontro como um “marco histórico”, e declarou: “Não estamos aqui recepcionando uma Corte estrangeira, mas um órgão que, de fato, integra o conjunto de instituições acreditadas pelo Brasil para a atuação na defesa e no fomento dos direitos humanos”.

Barbosa tem razão. Criado nos anos 1960, no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos), o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos dotou-se de uma comissão (órgão político) e de uma corte (órgão jurisdicional) para controlar o cumprimento pelos Estados da Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica. Em 1992, o Brasil ratificou a Convenção, e em 1998 aceitou sujeitar-se à jurisdição da Corte.
Não obstante, as palavras do presidente do STF são surpreendentes. Primeiramente, porque o Brasil é um perfeito cosmopolita no que concerne as suas relações comerciais e à atração de investimentos estrangeiros, mas um notório provinciano quando o assunto é o direito internacional dos direitos humanos. Embora muito citadas, as convenções internacionais são pouco aplicadas por nossos tribunais. O mesmo vale para a jurisprudência de tribunais internacionais, como a CIDH, em geral referida à la carte, como suposta demonstração de erudição dos juízes, e não como verdadeiro reconhecimento de nossa submissão à ordem jurídica regional.
Tal fenômeno excede largamente os tribunais. A despeito da retórica de valorização do sistema regional nos discursos oficiais brasileiros, ainda existe uma imensa desconfiança por parte de numerosas autoridades brasileiras, não menor do que o franco desprezo, em relação à Comissão e à Corte interamericanas.
Foi feroz a reação da presidente da República, Dilma Roussef, contra a Comissão Interamericana quando esta recomendou ao Brasil uma série de medidas concernentes à usina de Belo Monte. Sob o slogan do “fortalecimento” do sistema, uma campanha de ataque à Comissão teve o beneplácito, senão o protagonismo, do Estado brasileiro. O ex-Ministro Vanucchi, que assumirá em janeiro uma vaga na Comissão, declarou recentemente que a Comissão “está doente” e que ele nela agirá “como um médico”.
Soma-se a esta dificuldade de aceitar críticas, ainda que construtivas e baseadas num tratado internacional, a proverbial ignorância dos brasileiros, inclusive de juristas, sobre o direito que se produz na esfera regional.
Poucos sabem que o Brasil foi condenado quatro vezes pela CIDH, nos casos relativos à morte por maus-tratos do paciente com distúrbio mental Daniel Ximenes Lopes; ao grampo ilegal para espionagem do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra); ao assassinato do trabalhador rural Sétimo Garibaldi; e finalmente no chamado Caso Araguaia, quando foi condenado, entre outros itens, a processar criminalmente e a julgar os autores das graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos durante a ditadura militar (1964-1985).
No Caso Araguaia, o grande obstáculo ao cumprimento da sentença do hóspede é justamente o anfitrião. Dois anos após a decisão, ainda prevalece o entendimento do STF que, na polêmica ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 153, contrariou frontalmente as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, ao manter uma interpretação da Lei de Anistia de 1979 que beneficia os perpetradores de crimes contra a humanidade.
Ora, segundo a decisão da CIDH, “são inadmissíveis as disposições de anistias, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como tortura, as execuções sumárias, extrajudiciárias ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados”.
A boa nova, porém, é o contraste da opinião de Joaquim Barbosa com a de outros Ministros do STF. Por exemplo, o hoje aposentado Cezar Peluso afirmou taxativamente, quando foi Presidente da casa, em 2010, que a CIDH “não revoga, não anula, não caça a decisão do Supremo” em sentido contrário.
Na mesma época, o ministro Marco Aurélio Mello afirmou que o direito interno deve se sobrepor ao direito internacional. Não teve vergonha de adicionar que a decisão da CIDH tem eficácia apenas política e que “não tem concretude como título judicial. Na prática, o efeito será nenhum, é apenas uma sinalização”. No mesmo sentido, o ex-Ministro do STF, Nelson Jobim, disse que as decisões da CIDH são meramente políticas e que não produzem efeitos jurídicos no Brasil.
Peluso deu-se ao luxo de tranquilizar os torturadores, prevenindo que o prejudicado por eventuais efeitos da sentença da CIDH poderia “entrar com Habeas corpus e o Supremo vai conceder na hora”. Jobim sentenciou: “O assunto não pode voltar ao Supremo, pois a Corte está sujeita a suas próprias decisões. As decisões de constitucionalidade têm efeito contra todos, inclusive eles [os ministros]”.
Essa postura hostil demonstra o provincianismo jurídico e o patriotismo seletivo de figuras importantes da República quando o assunto é a efetividade dos direitos humanos, apesar da submissão voluntária do Brasil ao sistema interamericano.
Por tudo isto, a realização de uma sessão aberta de julgamento da CIDH em território brasileiro não pode se resumir apenas a mero diálogo cordial entre autoridades, animada por protocolos diplomáticos. A sessão da CIDH em Brasília precisa sensibilizar o governo brasileiro e o STF para que levem a sério o sistema interamericano de direitos humanos, a fim de que haja um diálogo institucional verdadeiro e proveitoso entre as jurisdições, situação cada vez mais necessária em um mundo que precisa aprender a globalizar, além da economia e das desigualdades, também a justiça.
Justiça, no caso Araguaia e em tantos outros, significa o respeito às recomendações e decisões emitidas pelos organismos internacionais que zelam pelos direitos humanos. A soberania nacional, tão flexível quando se trata de negócios, é reafirmada – e não contrariada – quando se coloca os direitos humanos em primeiro lugar.