terça-feira, 16 de setembro de 2014

O “ATAWAD” das novas tecnologias de informação e comunicação e os desafios para o Direito e Justiça


Por Jânia Maria Lopes Saldanha


A influência das novas tecnologias de informação e comunicação sobre o Direito e a Justiça é um fenômeno global. Por causa dela, o Direito, antes restrito às regras elaboradas pelos legisladores, passou sutilmente a ser composto pelas regras técnicas feitas por técnicos e especialistas e das quais tratei em meu ensaio anterior publicado neste espaço. Tais normas produzem, minimamente um duplo efeito: vinculam as ações dos Estados e orientam as práticas estandartizadas de empresas privadas em setores bem definidos e preponderantes da economia contemporânea.
Por outro lado, a Justiça também experimenta profundas modificações, seja no que diz respeito à atuação dos atores, cada vez mais vinculados a padrões performatizados, padronizados e modelizados, quanto no que se refere ao funcionamento, orientado pelo fluxo, pela quantificação e pelo controle a partir de dados estatísticos. Boas práticas e código de conduta andam de mãos dadas.
Como já referi, essa irrigação provocada pelas novas tecnologias de informação e comunicação, cuja representação máxima é a internet, não deve ser compreendida a partir da lógica binária do bom e do mau. Precisa sim ser pensada para que não percamos de vista o papel das instituições, das organizações, da sociedade civil e de nós mesmos no contexto dessas profundas transformações.
O slogan ATAWAD[1] é, sem dúvida, profundamente sugestivo. Indica que a desespacialização, destemporalização e deslocalização são as principais expressões da atuação da internet. Assim, a alusão de Guillebaud[2] ao mundo cibernético como sendo o Sexto Continente ganha procedência porque é não só desterritorializado, quanto profundamente imediatizado. Não está em lugar algum e está em todo o lugar. Torna-se instrumento poderoso não só para viabilizar as comunicações e negócios de toda ordem, mas também para solidificar a vigilância global que para além de ser um problema para os Estados-nação e para a democracia, já profundamente desafiados e fragilizados por esse novo continente computacional, representa um problema – e um desafio – geopolítico difícil de controlar na medida em que há de reconhecer-se que os ainda escassos marcos normativos nacionais e internacionais são tímidos e, amiúde, impotentes para fazer frente à sua invasão.
Como refere Olivier Sichel[3], as três expressões simultâneas da internet, ou seja, “anytime, anywhere, any device” a coloca em contradição com o mundo material. De fato, há uma inegável concentração localizada de grandes empresas de tecnologia de informação e comunicação no afamado “Vale do Silício” que, indiscutivelmente, coloca os Estados Unidos em posição hegemônica nas relações globais em face da existência de um “triângulo de ouro”[4] que sustenta tal concentração:  empresas dinâmicas, expertise universitária e de pesquisa e financiamento robusto. Essa concentração geográfica é uma das principais características da lógica das novas tecnologias de informação e comunicação. A partir desse ponto de vista, o “Sexto continente” é concreto e determina relações de poder geopolíticas que são desiguais e difíceis de combater.
Desse modo, um dos grandes desafios, no campo do Direito, é impor às transnacionais de informação e comunicação, não apenas o direito interno, mas também o direito internacional e o direito convencional dos direitos humanos. Não é novidade que essas empresas têm sido acusadas em inúmeros quadrantes do globo, de práticas concorrenciais abusivas e uso abusivo da gestão de dados pessoais, o que representa violação dos direitos humanos. Na semana passada, no que pode ser considerado em grande golpe contra uma dessas empresas, a gigante Google, a imprensa internacional[5] noticiou a reabertura, pela Comissão Europeia, de um processo antitruste em que ela é acusada de práticas comerciais abusivas. Resultado incerto. Expectativas intensas.
No Brasil, o Marco Civil da Internet[6] (Lei 12.965 de 23.04.2014) teve seu percurso legislativo final apressado após o pronunciamento crítico da Presidente Dilma Rousseff junto à Assembleia Geral da ONU em setembro de 2013, ocasião em que a mesma condenou veementemente a violação das comunicações e informações por parte dos EUA. Especialistas na matéria consideram que o conteúdo da lei brasileira é avançado em relação a outros já existentes e que, por isso, pode inspirar a tarefa legislativa de outros Estados.
Com efeito, dentre os seus fundamentos, o Marco Civil prevê o respeito aos direitos humanos, a pluralidade e a diversidade, a abertura e a colaboração, a livre iniciativa e a livre concorrência e a finalidade social da rede. E como princípios estabelece a liberdade de expressão e comunicação, a proteção à privacidade e aos dados pessoais, a neutralidade da rede, a preservação da estabilidade e funcionalidade da rede, a responsabilização dos agentes de modo compatível às suas atividades, a natureza participativa da internet e a liberdade dos negócios. Essa lei, como se sabe, resultou de um amplo debate e participação plural. O conjunto de fundamentos e princípios expressa a vitória em favor da internet neutra e livre. A Declaração Multisetorial de São Paulo (NETMundial)[7] de 24 de abril de 2014, resultante do envolvimento de governos, sociedade civil, setor privado, comunidade técnica e acadêmica e de pessoas de todo o mundo, embora seja documento não vinculativo, em boa medida reproduziu muitos dos fundamentos e dos princípios do Marco Civil da Internet do Brasil.
Porém, o impasse está em saber em que medida sua aplicação resultará em efeitos práticos para debelar abusos e ilegalidades de cuja prática são acusadas as grandes empresas do setor aqui em comento. A propósito disso, é de conhecimento público que processos administrativos[8] contra as empresas Google e Google Brasil Internet tramitam junto ao CADE, movidos sob o fundamento de supostas práticas anticompetitivas.   Da adequada interpretação hermenêutica da nova lei dependerá o respeito às práticas concorrenciais, à neutralidade e aos direitos humanos na internet daqui para a frente. Entretanto, este percurso não se faz sem solavancos. Os europeus têm experimentado as derivas impostas pelos gigantes da internet. Após ter sido condenado pela Corte de Justiça da União Europeia a respeitar o “direito a ser esquecido”, o Google criou de forma unilateral o seu próprio processo após ter nomeado uma comissão encarregada de analisar caso por caso, conduta essa, surpreendentemente, aceita pelo Tribunal.[9]
Assim, ao primeiro olhar poderá ser ingênuo esperar que as grandes empresas de tecnologias de informação e comunicação cumpram espontaneamente os marcos normativos da internet nacionais e não nacionais pois, afinal, como refere Antoine Garapon[10] os Deals de justiceestabelecem uma radical mudança de paradigma, um deslocamento na forma de solução de conflitos do judiciário para as próprias empresas que se tornam as novas “bouches de la loi” do Século XXI. Nesse cenário, a Justiça não é mais para dizer o Direito e sim apenas regular fluxos.[11]
Contudo, tal como fez o Brasil, tais leis deverão conter em si abertura para a adaptação aos velozes movimentos da internet quanto mecanismos eficazes contra abusos e ilegalidades. Sobretudo, como ensina a lei brasileira, deve-se defender a primazia do Direito e não transigir quanto aos princípios que devem reger as relações no mundo virtual. Afinal, quando Hannah Arendt disse no seu “A condição humana” que “Na realidade, os feitos perderão cada vez mais a sua capacidade de opor-se à maré do comportamento, e os eventos perderão cada vez mais a sua importância, isto é, a sua capacidade de iluminar o tempo histórico. A uniformidade estatística não é de modo algum um ideal científico inócuo, e sim o ideal político, já agora não mais secreto de uma sociedade que, inteiramente submersa na rotina do cotidiano, aceita pacificamente a concepção científica inerente à sua própria existência”, o que fez foi projetar com o brilho peculiar de sua inteligência essa nova forma de governar a vida humana que se institui não apenas como um novo procedimento e sim como um dispositivo  simbólico que modifica radicalmente a nossa percepção do mundo.
 
Jânia Maria Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

[1] Significa: anytime, anywhere e anydevice (a qualquer hora, em qualquer lugar, de qualquer dispositivo). A referência está em: SICHEL, Olivier. L’échiquier numérique américain. Quelle place pour l’Europe? Disponível em link. Acesso em 12.09.2014.
[2] GUILLEBAUD, Jean-Claude. O princípio de humanidade. Aparecida/SP: Ideias&Letras, 2008, p. 38.
[3] SICHEL, Olivier. L’échiquier numérique américain. Quelle place pour l’Europe?, op. cit. p. 18.
[4] Ibid.
[5] Europe targets Google yet again. Disponível em: link. Acesso em 12.09.2014.
[6] Disponível em link. Acesso em 12 de setembro de 2014.
[7] Disponível em: link. Acesso em 12.09.2014.
[8] São os processos: Movido pelo E-Commerce 08012.010483/2011-94; 08700.009082/2013-03 e movido pela Microsoft 08700.005694/2013-19. Disponível em: link. Veja-se notícia em:link. Ambos os acessos em 12.09.2014
[9] SICHEL, Olivier. L’échiquier numérique américain. Quelle place pour l’Europe?, op. cit. p. 20. Veja-se em link.
[10] GARAPON, Antoine. SERVAN-SCHREIBER, Pierre. Um changement de paradigme. In: GARAPON, Antoine. SERVAN-SCHREIBER, Pierre (Dir.). Deals de justice. Le marché américain de l’obéissance mondialisé. Paris: PUF, 2013, p. 1-22.
[11] GROS, Frédéric. Coopérer contra soi-même. GARAPON, Antoine. SERVAN-SCHREIBER, Pierre (Dir.). Deals de justice. Le marché américain de l’obéissance mondialisé, op. cit., p. 185.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Charlot, os ONNI- Objetos normativos não identificados e a “arte” de decidir por standards e indicadores

Por Jânia Maria Lopes Saldanha
Sabe o leitor que o surgimento da revolução industrial transformou o mundo das manufaturas numa grande usina de produção em série, tão bem ilustrada pela verve artística de Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos”. O rendimento no trabalho passou a depender da divisão das tarefas e dela foi apenas um passo para a objetificação do trabalhador que se viu, inexoravelmente, subjugado ao seu ritmo. O célebre “Charlot” foi o retrato da desumanização desse tipo de trabalho sem espaço para a vida criativa e para a realização pessoal.
Embora essa seja apenas uma pequena lembrança das inúmeras “inaugurações” ocorridas na passagem do Século XIX para o Século XX, não é preciso muito esforço imaginativo para perceber que a divisão do trabalho em tarefas acentuou a necessidade da “normalização técnica”, ou seja, de normas[1] de especificação e de estandartização em nome da eficiência da produção. Mas, de fato, a virada decisiva no campo da normalização foi a espantosa procedimentalização das normas que o Século XX produziu e que, agora, no Século XXI são cada vez mais sofisticadas. Refiro-me às chamadas “normas procedimentais” para responder às exigências das organizações que indicam a vitória da performatividade sobre as regras, isto é, a vitória dos aspectos organizacionais sobre os aspectos jurídicos – e substanciais – no sentido estrito desse termo.
Trata-se, por um lado, de uma transformação profunda das formas, dos processos de regulação e da própria natureza das regras e, por outro, da expansão de um outro tipo de normatividade. Transformação e expansão que, juntas, expressam um fenômeno de caráter global.
Assim, esse movimento sútil coloca as clássicas regras jurídicas em concorrência com outros tipos de normas, quais sejam, as técnicas e as de gestão produzidas pelos especialistas e não pelo legislador. Tais normas, especialmente no contexto transnacional, experimentam sucesso em relação às regras e instituições clássicas. Entretanto, é preciso fixar o olhar para perceber que, do ponto de vista das ordens jurídicas nacionais, esse fenômeno também não é de todo desconhecido.
Na verdade, é preciso dizer que a história das normas não é fenômeno recente. A linguagem, a escrita e os sistemas numéricos não passam de sistemas de normas. Mas é importante considerar que a sua concorrência com as regras e instituições jurídicas é o que marca indelevelmente, por exemplo, o contexto da União Europeia e da globalização como um todo. Então, o passado revigora-se no presente apenas de forma sofisticada.
Com efeito, essas normas de dupla face – técnicas e de gestão – ocupam um lugar ainda pouco explorado pelos juristas, daí serem metaforicamente denominadas pelos pensadores da Escola de Bruxelas de ONNI[2] – objetos normativos não identificados. Ambas as normas são feitas por experts ou por técnicos. As primeiras, por exemplo, prestam-se a especificar produtos em nome das políticas de qualidade total ou de “zero defeito”, normas essas que são componentes essenciais para o funcionamento da economia contemporânea, do que é exemplo o conjunto de normas ISO, como a 9000 e 14000 em matéria de gestão ambiental. As segundas, entram no campo da gerência, organização e direção das condutas humanas para assegurar a qualidade, também em nome da eficiência. Mas essa qualidade, como se sabe, não é definida de maneira substancial e sim procedimental, o que representa a passagem de uma economia de produtos a uma economia de serviços em busca da “qualidade total”.
Convido o leitor a refletir, então, sobre a existência de um “hibridismo” entre regras jurídicas e as normas técnicas e de gestão que, no entanto tem sido mantido na invisibilidade. O grande sucesso dessas últimas encontra-se na razão inversa ao silêncio que as rodeia.
Assim, nossas concepções clássicas do direito são débeis para explicar essa transição dos aparelhos institucionais para fazer a mediação entre o que é produzido pela “expertise” dos laboratórios, pelas reuniões dos especialistas e pelos Parlamentos nacionais e não nacionais.
Mais imediatamente, o desafio que nos bate à porta é entender, por exemplo, se as reformas de instituições públicas como o Poder Judiciário, embora encontrem justificativa na crise do sistema de justiça, não sucumbiram à linguagem da normalização técnica e de gestão, em nome da eficiência produtiva. A “responsabilidade empresarial” dos tribunais ganha relevância no contexto do discurso de promoção do Estado de Direito alinhado à boa governança. Desse modo, como já recomendou o Banco Mundial para países da América Latina, dentre eles o Brasil, a eficiência e eficácia do Poder Judiciário devem ser perseguidas juntamente com a sua independência.
Mas onde seria avistado o Charlot do Século XXI aqui? Na rendição dos atores que realizam o trabalho do Poder Judiciário, sobretudo os juízes, aos standards das práticas apenas para cumprir o timing do processo em prazo razoável e para dar conta de um conjunto de metas destinadas a reduzir o número de processos, as taxas de congestionamento e o número de recursos, entre outros. Assim, a modulação dos serviços do Poder Judiciário aos padrões de qualidade, descritos em inúmeros documentos oficiais e relatórios anuais como estratégias para melhorar os resultados de sua atividade é palpável e, ao que parece, inexorável.
O perigo está em nutrir uma concepção de qualidade da justiça ligada essencialmente à qualidade organizacional, ao modo, por exemplo, das exigências técnicas da ISO. Nesse contexto, a preocupação com a qualidade das decisões da justiça é desviada para a preocupação com a qualidade dos comportamentos que, inseridos na sua estrutura organizacional, produzem essas decisões.  Cumprir metas e apresentar indicadores em prazo previamente definidos, depender da produtividade para obter promoções na carreira, são exemplos de exigências que alinham os serviços do Poder Judiciário à performatividade dos termos e da linguagem da administração empresarial.
À guisa de conclusão, pode-se dizer que a adoção dessas práticas e linguagem não seria um problema se, apesar delas, o discurso judiciário não ficasse privado da preocupação com a qualidade de suas decisões e sobre a necessidade de que sejam adequadas à Constituição. O predomínio de standards, de normas técnicas e de gestão nos domínios do Poder Judiciário se, em aparência, parece envolver uma linguagem neutra, implica, profundamente, numa escolha valorativa que modifica profundamente o próprio sentido da Justiça.
Jânia Maria Lopes Saldanha Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista Capes processo BEX 2417/14-6. Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria.  Advogada.