quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Publicação no Anuário Mexicano de Direito Internacional (edição 2015)

Título do Trabalho:

A margem nacional de apreciação e sua (in)aplicação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de anistia: uma figura hermenêutica a serviço do pluralismo ordenado?

Autores:

Jânia Maria Lopes Saldanha
Márcio Morais Brum

Resumo:

O trabalho tem como objetivo estudar a doutrina da margem nacional de apreciação, analisar as críticas positivas e negativas a respeito, e interrogar quais os limites de aplicabilidade e em que matérias se faz possível o seu reconhecimento. A questão central a ser respondida é sobre a (in)aplicabilidade da MNA em matéria de anistia para crimes contra a humanidade, à luz da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Desse modo, estará investigando a importância do trabalho da jurisdição de direitos humanos para a construção e sofisticação da doutrina da MNA. Utiliza-se o método fenomenológico-hermenêutico. Chega-se às conclusões de que o reconhecimento da margem nacional de apreciação pode ser um meio eficaz de ordenação do pluralismo jurídico e construção de um direito comum; que o uso da MNA, porém, não é imune a críticas; e que em matéria de anistia para crimes de lesa humanidade não é possível o reconhecimento de MNA.

Palavras-chave: internacionalização do direito; direitos humanos; pluralismo ordenado; margem nacional de apreciação; leis de anistia.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

“O último dia de um condenado” e o diálogo entre os juízes

Por Jânia Lopes Saldanha


“Condenado à morte! Há cinco semanas que vivo absorvido por este pensamento, sempre só com ele, sempre gelado pela sua presença, sempre curvado debaixo do seu peso! Outrora – porque mais me parece que já lá vão anos, não apenas algumas semanas – eu era um homem como os outros homens. Cada dia, cada hora, cada minuto tinha a sua ideia própria. O meu espírito, jovem e rico, estava cheio de fantasias. E divertia-se a desenrolar-, umas após outras, sem ordem e sem fim, bordando de inesgotáveis arabescos este rude e frágil tecido da vida. Eram raparigas, esplêndidas vestes de bispo, batalhas vencidas, teatros cheios de barulho e de luz, e depois ainda raparigas e discretos passeios à noite sob as largas ramagens dos castanheiros. Era sempre festa na minha imaginação. Eu podia pensar no que queria, eu era livre.
Agora sou cativo. O meu corpo está algemado numa cela, o meu espírito está preso numa ideia. Uma horrível, uma sangrenta, uma implacável ideia! Eu só tenho um único pensamento, uma única convicção, uma única certeza: condenado à morte! O que quer que faça, ele está sempre lá, esse pensamento infernal, como um espectro de chumbo a meu lado, só e ciumento, rechaçando qualquer distração, face a face comigo, com este miserável que eu sou, e abanando-me com ambas as mãos de gelo quando tento voltar à cabeça ou fechar os olhos. Ele desliza para dentro de todas as formas que o meu espírito procura a fugir-lhe, mistura-se como um refrão horrível a todas as palavras que me dirigem, cola-se comigo às hediondas grades da cela, importuna-me acordado, espia o meu sono convulsivo, e reaparece nos meus sonhos sob a forma de um cutelo. Acabo de despertar em sobressalto, perseguido por ele, e vou dizendo para mim mesmo: “Ah! era apenas um sonho!” Ai de mim! antes mesmo que os meus pesados olhos tenham tido tempo de se entreabrir bastante para ver esse fatal pensamento escrito na horrível realidade que me rodeia, na laje úmida e suada da minha célula, nos pálidos raios da minha lanterna, no tecido grosseiro do meu vestuário, na sombria figura do soldado de guarda cuja cartucheira reluz através das grades da cela, parece-me que já uma voz está a murmurar-me ao ouvido: – Condenado à morte!” [1]
Atual? Parece que sim após o cumprimento da pena de morte imposta ao brasileiro Marco Archer Cardoso Moreira[2] e mais seis pessoas pela justiça do Estado da Indonésia ocorrido no dia 17 de janeiro de 2015 e, no domingo passado, pela pena de morte executada pelo “estado islâmico” contra o jornalista japonês Kenji Goto[3]. Em qualquer caso, seja a pena praticada por um Estado constituído ou por um grupo armado e ilegítimo, no caso do último, o que se testemunha é a prática de um ato que tem sido repudiado por grande parte da comunidade internacional.
De fato, os movimentos contra pena de morte não são expressão do tempo presente. Beccaria, em 1764 já defendia sua abolição. Na passagem citada – que nos angustia profundamente –  e perdoem-me os leitores se me alonguei, é Victor Hugo quem fala na obra “O último dia de um condenado” publicado no ano de 1829. Ele que era contra a pena de morte, eleva a palavra do condenado para dizer que tal pena constitui o apagamento físico e moral do sujeito que, com o espírito agonizante diz: “Talvez eles nunca tenham refletido, os desgraçados, nessa lenta sucessão de torturas que encerra a fórmula expeditiva de uma sentença de morte. Ter-se-ão ao menos alguma vez detido sobre esta idéia pungente de que no homem que eliminam há uma inteligência, uma inteligência que estava a contar com a vida, uma alma que não se dispôs para a morte?”
Como então ignorar que além da perda da possibilidade de todas as possibilidades, que é viver, o que a pena de morte impõe, antes, é o apagamento moral. Teríamos como negar que tal apagamento é também uma pena? Curioso é que se a pena de morte ainda é admitida por muitos Estados, os tratamentos cruéis e degradantes fazem parte do conjunto de ações absolutamente interditadas. Quem irá negar que a longa espera no corredor da morte é um sádico tratamento que viola a dignidade humana, aliás, como já decidiu a Corte Europeia de Direitos Humanos?
Sem desconhecer a polêmica, mais uma vez renovada, com a morte dos condenados pelo Estado da Indonésia e a de Kenji Goto, vale a pena pensar, sobre os mitos e verdades que circundam a pena de morte, sobretudo quando decretada pelo Estado. A propósito disso, a Anistia internacional ao tomar como referência pesquisas realizadas, demonstra que a pena de morte não dissuade a prática de crimes. O que ela faz, em verdade, é reforçar o uso da força pelo Estado e perpetuar os ciclos de violência.
Quando relacionada às drogas, no ano de 2008, o Diretor Executivo das Nações Unidas para o combate às Drogas e ao Crime defendeu ser necessário eliminá-la para tal crime, dizendo que “Apesar das drogas matarem, não acredito que seja necessário matar por causa das drogas”.[4]
É sabido que a Indonésia ratificou o Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU.[5] O artigo 6º, § 2º desse texto internacional diz que “Nos países em que a pena de morte não tenha sido abolida, esta poderá ser imposta apenas nos casos de crimes mais graves, em conformidade coma legislação vigente na época em que o crime foi cometido e que não esteja em conflito com as disposições do presente Pacto, nem com a Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Poder-se-á aplicar essa pena em decorrência de uma sentença transitada em julgado e proferida por tribunal competente.”
Os atos relacionados com as drogas – como o tráfico e o consumo- poderiam ser considerados graves? A Anistia Internacional diz que a aplicação da pena de morte para esses crimes é uma violação à lei internacional que a proíbe. De fato, a ONU posiciona-se contrária a essa medida extrema e medieval. O Relator Especial da ONU para Execuções Extrajudiciais, no ano de 2007, manifestou-se contrariamente a essas práticas da Indonésia quando afirmou perante o Tribunal Constitucional desse País que “a morte não se constitui como uma resposta apropriada para o crime de tráfico de droga.”.
No caso ocorrido na Indonésia, um dos argumentos é a defesa da soberania desse Estado em determinar como sancionar os delitos praticados em seu território. Ora, mais uma vez vale lembrar sobre o esmaecimento do modelo de Estado westfaliano e sobre a extrema atualidade do pensamento de Ulrich Beck, a quem aqui se presta homenagem póstuma, acerca do necessário fim do paradigma do “nacionalismo metodológico” em um mundo que às duras penas tem globalizado alguns princípios protetivos dos direitos humanos que ultrapassam as diferenças culturais, embora elas devam ser respeitadas.
Imagino que muitos leitores poderão pensar que seguramente há muito desacordo sobre essa matéria. Afinal, do conjunto de Estados existentes, uma geometria mais ou menos variável, indica que 58 [6] deles não são abolicionistas da pena de morte em pleno Século XXI. O que justifica essa constância – e tolerância – é que não se pode esquecer – para tentar mudar – que um dos ramos do direito mais atrelado à soberania estatal é o direito penal. O Brasil é abolicionista da pena de morte apenas para os crimes comuns. O repúdio veemente e as ações concretas tomadas pelo governo brasileiro junto ao governo da Indonésia para obter clemência a Marco indicam que não só na esfera governamental, mas na sociedade como um todo, a abolição total da pena de morte deve ser seriamente pensada.
Essa necessária reflexão está conectada com o fenômeno da profunda transformação e reconfiguração a que têm sido submetidas inúmeras disciplinas jurídicas. Aliás, se compreendermos o direito a partir de sua totalidade e complexidade, mais apropriado é dizer que ele sofre, por inteiro, o impacto das mudanças que o mundo vive. Mesmo que essa reflexão não carregue nada de novo, não custa insistir que o direito penal não está desconectado desse todo e que é iluminado pela teoria jurídica, pela teoria constitucional e pelos direitos humanos. Se Vitor Hugo tivesse escrito a obra que serve de inspiração a esse ensaio no final do Século XX, seguramente não teria experimentado a solidão que o Século XIX lhe impôs.
É sabido que os principais textos de direitos humanos excepcionam o direito à vida permitindo ainda a pena de morte. Mas é justamente pela via dos direitos humanos que juízes de várias cartografias têm desenvolvido um frutuoso “diálogo” sobre essa pena. A internacionalização do direito traz como marca essencial essa rica possibilidade de trocas jurisprudenciais voltada à evolução do direito.
Esses diálogos nasceram no âmbito de pedidos de extradição, de questionamento sobre os direitos processuais dos presos condenados à morte. Tem-se como exemplo a adoção pelas justiças do Canadá e da África do Sul da decisão proferida no caso Soering pela Corte Europeia de Direitos Humanos. A jurisprudência desse caso indica que essa Corte impôs aos Estados da Europa verificar se a legislação do Estado requerente de um pedido de extradição é compatível com a Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Mas a “arte desse diálogo” precisa ser aprimorada. São conhecidas as resistências dos juízes americanos e chineses nessa matéria. Com efeito,  se o diálogo provocou inúmeras mudanças positivas de resistência à pena de morte e, por isso, deve ser mantido e valorizado, não é de fato, a única saída para essa tão delicada quanto urgente questão. É evidente, do ponto de vista da teoria do direito e da teoria processual que o fim da pena de morte ou a sua não aplicação não pode ficar sujeito à boa vontade dos juízes.
Como refere Mireille Delmas-Marty[7] é preciso mais do que isso. Os cruzamentos normativos e jurisprudenciais devem ser organizados para estabelecer-se uma coerência comum. Em primeiro lugar, segundo a autora, deve existir uma reciprocidade e simetria entre conjuntos normativos diferentes, como por exemplo entre os textos constitutivos da União Europeia e a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Em segundo lugar, no diálogo entre os juízes deve estar pressuposto que eles gozem do status mínimo de independência, imparcialidade e que conheçam minimamente a jurisprudência estrangeira. Mas para que o diálogo não seja disperso e não acabe por gerar mais do que evitar conflitos interpretativos na matéria, a adoção de um método é não só útil, quanto necessário. Finalmente, as técnicas interpretativas de aplicação do jus cogens e do costume internacional são dois caminhos para chegar-se a uma coerência de conjunto quanto à aplicação da pena de morte enquanto ela não for abolida pelos Estados onde está prevista.
O exercício democrático das tecnologias de informação e comunicação pelas redes sociais, como tem ocorrido, pode constituir-se em poderoso espaço de conscientização e de pressão para que a pena de morte seja extinta nos Países onde ainda ela faz parte da cultura jurídica e decorre de uma visão ultrapassada de soberania. Tanto os juristas quanto os etnólogos bem sabem não ser a mudança excluída pela tradição. Ela não possui “uma etiqueta inflexível, tampouco um protocolo imutável”[8]. É por isso que a pós-modernidade pode ser pensada como o “além” da modernidade. Entretanto, esse “além”, que é insistentemente olhado como uma condição para questionar – quiçá transformar – a tradição, somente se entendido em sua energia “inquieta e revisionária”, como refere Homi Bhabba[9], é que será a condição de possibilidade para o “pós” ser realmente transformador do presente para um “lugar expandido e ex-cêntrico de experiência e aquisição do poder”.
Todo grupamento humano constrói sua tradição num caminho que inicia no presente e dirige-se ao passado. Assim, a tradição opera uma retroprojeção e institui uma filiação invertida: “longe dos pais engendrarem os filhos, os pais nascem dos filhos”[10]. Não é, enfim, o passado que produz o presente mas é este que o produz: “A tradição é um processo de reconhecimento de paternidade.” É uma boa ideia orientar o debate sobre a pena de morte tendo esse precioso sentimento de que Beccaria e Victor Hugo podem ser nossos filhos.
Jânia Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

Referências
[1] HUGO, Victor M. Le dernier jour d’un condamné. Disponível em francês em:http://beq.ebooksgratuits.com/vents/hugo-claude.pdf. O extrato citado foi extraído e adaptado de: http://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/Victor-Hugo-o-U-Ltimo-Dia/51339590.html
[2] Disponível:  http://www.cartacapital.com.br/internacional/brasileiro-marco-archer-e-fuzilado-na-indonesia-4936.html
[3] http://www.lemonde.fr/japon/article/2015/02/01/qui-etait-kenji-goto-le-journaliste-japonais-assassine-par-l-etat-islamique_4567584_1492975.html
[4] http://www.amnistia-internacional.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=77:mitos-e-factos-sobre-a-pena-de-morte-&catid=18:mitos-e-factos&Itemid=76
[5] http://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20Direitos%20Civis%20e%20Pol%C3%ADticos.pdf
[6] São eles: Afghanistan, Antigua-et-Barbuda, Arabie saoudite, Autorité palestinienne, Bahamas, Bahreïn, Bangladesh, Barbade, Bélize, Biélorussie (Bélarus), Botswana, Chine, Comores, Corée du Nord, Cuba, Dominique, Égypte, Émirats arabes unis, États-Unis, Éthiopie, Gambie, Guatémala, Guinée, Guinée équatoriale, Guyana, Inde, Indonésie, Irak, Iran, Jamaïque, Japon, Jordanie, Koweït, Lésotho, Liban, Libye, Malaisie, Nigéria, Oman, Ouganda, Pakistan, Qatar, République démocratique du Congo, Sainte-Lucie, Saint-Kitts-et-Nevis, Saint-Vincent-et-les-Grenadines, Singapour, Somalie, Soudan, Soudan du Sud, Syrie, Taiwan, Tchad, Thaïlande, Trinité-et-Tobago, Viêt-Nam, Yémen, Zimbabwe. Disponível em: http://www.amnesty.org/fr/death-penalty/abolitionist-and-retentionist-countries
[7] DELMAS-MARTY, M. Les forces imaginantes du droit III. La refondation des pouvoirs. Seuil:Paris, 2007.
[8] LENCLUD, G.  La tradition n’est plus cequ’elleétait…Sur les notions de tradition et de societé traditionnel en  ethonologie. Revue d’Ethologie de l’Europe, nº 9, oct. 1987. Disponível em: http://terrain.revues.org/3195#tocto1n2.
[9] BHABBA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 23.
[10] LENCLUD, G.  La tradition n’est plus cequ’elleétait…Sur les notions de tradition et de societé traditionnel en  ethonologie, p.8.

Milonga para a liberdade de expressão

Por Jânia Maria Lopes Saldanha e Rym Ghedira


Nos últimos dez dias boa parte das pessoas e das instituições públicas e privadas do mundo centrou a análise e o debate sobre o atentando contra o semanário Charlie Hebdo, em Paris. A primeira das autoras já teve oportunidade de rapidamente manifestar-se tão logo os fatos ocorreram[1]. Sensibilizar-se com o ocorrido, participar dos debates nas redes sociais, deixar vir à fala nossas posições representa exercer o luto por algo que também perdemos enquanto humanos que somos. E falar dessa tragédia não significa que desconhecemos ou somos insensíveis a todas as outras tragédias de que a humanidade foi ou é vítima e contra as quais devemos protestar e lutar veementemente.
O ataque ao Charlie Hebdo e a morte das pessoas representou a morte real para quem se foi e a morte simbólica do direito de expressão considerado em suas mais variadas possibilidades de manifestação. Do ponto de vista pessoal, a morte das vítimas do atentado constituiu uma perda humana irreparável. Irreparabilidade que deriva de todas as mortes violentas que acontecem pelo mundo afora, seja sob a forma de assassinatos, tratamentos desumanos e degradantes, tortura, ou seja, representadas por qualquer forma de discriminação, ofensa, exclusão ao mínimo existencial, etc. Por outro lado, do ponto de vista institucional, o que se viu, foi a tentativa de fragilizar um periódico de comunicação que atua na área específica da crítica política e social praticada pelo exercício do humor.
Vale lembrar aqui de um pequeno texto de Marcelo Gleiser[2] sobre o riso. Mesmo que tantos desde a antiguidade já o tivessem feito, ele repete a pergunta : « Por que rimos? » E responde : « Ninguém sabe. O riso tem uma qualidade universal: todas as culturas têm seus contadores de piadas. E, mesmo que a piada tenha graça só para uma cultura, as pessoas reagem sempre da mesma forma. Não importa se a língua é completamente diferente, se a pessoa é da Mongólia, um aborígene australiano ou um índio tupi, o riso é sempre muito parecido, uma reação física a um estímulo mental. Mas que estímulo mental é esse que nos faz reagir fisicamente de uma forma tão característica? » Alguém pode duvidar que os desenhistas do Charlie Hebdo queriam provocar o riso e não o ódio usando as imagens caricaturizadas dos nossos deuses, dos nossos ídolos e, porque não,  das nossas pequenas e grandes tragédias cotidianas, justamente para driblar o lado sério e penoso da existência humana?
Entretanto, nossa intenção não é aqui discutir esse trágico, triste e lamentável episódio à luz da filosofia, da psicanálise ou da sociologia. Muitos já o fizerem nesta última semana. Tampouco será nossa intenção fazer a análise tomando por referência as teorias liberais ou comunitaristas. Embora concordemos com as procedentes palavras do Prof. Jorge Luiz Souto Maior[3] de que pretender explicar o ocorrido apenas com as lentes do sistema normativo é perigoso porque acarreta a limitação das «análises sobre os valores relevantes à evolução da sociedade aos padrões da ordem jurídica posta », devemos refletir sobre o papel e o lugar do direito para garantir a liberdade de expressão, ainda que essas duas dimensões não sejam iguais em muitos lugares.
Ora, uma das tantas questões que emergiram depois dos atentados terroristas na sede de Charlie Hebdo é justamente: devem existir limites para a liberdade de expressão ? A liberdade de expressão deve ou não ser considerada uma das fortes expressões dos Estados democráticos de direito, quanto também do denominado « jus commune » internacional?
Mesmo que não haja uma única resposta a essas perguntas, é interessante anotar o que dizem os textos internacionais protetivos dos direitos humanos. A primeira referência normativa mais expressiva de proteção à liberdade de expressão é o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos[4] que diz : « Todo homem tem o direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaiquer meios, independentemente de fronteiras ».
Na Europa o artigo 10 da Convenção para salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais[5] diz que: “1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.” O item 2, essa Convenção tal como a Convenção Americana, prevê deveres e responsabilidades.
Nas Américas, o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos determina  que : « 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.” E no item 2 prevê que não haverá nenhum tipo de censura prévia podendo, em alguns casos, haver responsabilidade posterior.
Na África, embora notadamente mais tímida, a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos[6], no artigo 9º, 2, prevê: “Toda pessoa tem direito de expressar e difundir suas opiniões de acordo com as leis e regulamentos.”
Como se vê, há um traço comum entre os marcos normativos internacionais citados que é o de justamente atribuir à liberdade de expressão o caráter de direito humano que, como regra, não pode sofrer limites.
No plano do Estados, seria impertinente repetir nesse espaço o amplo rol de Constituições que possuem dispositivo similar ao art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos ou aos artigos da Convenções regionais. Entretanto, a repetição dessas previsões nas Cartas constitucionais evidencia o importante fenômeno da constitucionalização do direito internacional e o compromisso assumido pelos Estados de respeitar tal direito. Não se pode negar, então, que um grupo expressivo da comunidade de Estados faz da liberdade de expressão um direito fundamental.
De fato, devemos prestar atenção. A liberdade de expressão consiste em um elemento estrutural da democracia, uma vez que torna possível a dissidência e o pluralismo. A Corte Interamericana de Direitos Humanos[7], em rumoroso caso que envolveu a religião católica, afirmou que a proteção e promoção de um conceito amplo de liberdade de expressão é a pedra angular da existência de uma sociedade democrática, considerada indispensável para a formação da opinião pública[8]. Gostemos ou não, em resguardo da própria democracia e das diferenças que deve contemplar, é que a liberdade de expressão não é apenas um valor instrumental ou um meio para um fim mais importante, trata-se simplesmente de elemento indissociável dos regimes democráticos. Gostemos ou não, ela apresenta-se como um aspecto inerente da própria noção de liberdade do homem e também de democracia, cujo cerceamento invariavelmente pode constituir em uma maneira, dentre tantas que existem, de dominar o homem e torná-lo submisso às mais variadas expressões de poder.
É cabível pensar, também, que o reconhecimento da legitimidade jurídica da liberdade de expressão e sua importância para a democracia produz-se no âmbito de sociedades maduras para reconhecer as próprias virtudes e defeitos, quanto também as virtudes e defeitos dos outros. A defesa contra ela – a liberdade de expressão – é o seu próprio exercício. Percepção ingênua ? Sim, se ignorarmos as múltiplas dificuldades para o uso simétrico desse direito. Não, se mesmo reconhecendo tais dificuldades, nos mobilizarmos para aprimorá-lo. Nesse sentido, se o quadro normativo citado mostra, por um lado, a visão do mundo ocidental, nem por isso podemos dizer que esse mesmo mundo seria melhor sem ele pois, parece ser comum o reconhecimento de que são uma conquista frente às inúmeras atrocidades que o mundo viveu, especialmente no Século XX.
Uma nota final : A mobilização da comunidade internacional deve estar ao centro das cooperações interestatais na sua luta contra o terrorismo. Hoje nós estamos todos consternados, a humanidade está consternada, devemos lutar contra o ódio e a ignorância. Faz parte da diversidade do mundo constituir a interpretação dos textos ponto discordante entre diferentes saberes, assim como um texto pode ser lido e interpretado de maneira a criar tensões no seio de diferentes comunidades. É justamente aqui que se encontra a real luta que devemos saber reconhecer e enfrentar. Parte da sensível e iluminada canção de Jorge Drexler[9] « Milonga del Moro judío » pode ajudar a entender nossa última afirmação : « Yo soy un moro judio que vive con los cristianos, no sé que Dios es el mío ni cuales son mis hermanos. No sé que Dios es el mío ni quales son mis hermanos »
Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.
Rym Ghedira é Mestre em  Sécurité Internationale Défense et Intelligence Economique (SIDIE), título obtido junto ao Institut du Droit de la Paix et du développement de l’Université de Nice Sophia antipolis. Realiza estágio junto ao IHEJ-Paris.

[1] A Paris de Charlie. Disponível em : http://saudeglobal.org/2015/01/08/a-paris-de-charlie-por-jania-maria-lopes-saldanha/
[2] Sobre o riso. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1008200806.htm
[3] A questão Charlie. Disponível em: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/A-questao-Charlie/5/32666
[4] Disponível em: http://www.un.org/en/documents/udhr/
[5] Disponível em: http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_FRA.pdf
[6] Disponível em: http://www.achpr.org/fr/instruments/achpr/
[7]Veja-se o caso “A última tentação de Cristo”. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_73_esp.doc
[8] BASTERRA, Marcela I. Derecho a la información vs. Derecho a la intimidad. 1ª ed. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2012.
[9] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=myVi6pVYYb8

O “Mal Estar na Civilização” e o Tribunal Penal Internacional

Por Jânia Maria Lopes Saldanha


No dia 30 de dezembro de 2014, a Emenda Constitucional nº 45, completou 10 anos. Entre inúmeras mudanças trazidas ao nosso sistema constitucional, esse texto normativo inseriu o Brasil no grupo de países que reconhece e, por isso, submete-se, à jurisdição do TPI – Tribunal Penal Internacional, segundo a redação dada ao art. 5º, § 4º, da Constituição Federal.
O TPI foi criado pelo Tratado de Roma[1] datado de 17 de julho de 1998 e começou a funcionar na Haia no ano de 2002. Como toda mudança significativa, sobretudo no plano das relações internacionais que envolvem os Estados, a criação desse tribunal não se livrou de intensos debates e tensões, sobretudo porque ancorada na necessidade de viabilizar-se melhor aplicação do direito internacional humanitário e para reduzir o problema da impunidade dos Estados.
De fato, como brevemente já tive oportunidade de tratar neste espaço, um dos mais contundentes problemas das relações globais é o da desumanização, por um lado e, o da (ir)responsabilidade dos atores que violam direitos humanos, por outro.
Com efeito, o Preâmbulo do Tratado de Roma diz que os crimes mais graves que atingem o conjunto da Comunidade internacional não podem restar impunes e que, para debelar tais impunidades, faz-se necessária não só a adoção de medidas estatais internas quanto o reforço da cooperação internacional. O artigo 5º estabelece um conjunto de crimes que seus redatores classificaram como mais graves como: a) genocídio; b) crimes contra a humanidade; c) crimes de guerra; d) crimes de agressão.
É possível interpretar que o texto do Tratado expressa a vontade de que sejam encontrados caminhos possíveis para aproximar os interesses da globalização em sentido amplo e a humanização, porquanto também é possível ler em seu Preâmbulo que os Países, ao ratificarem tal texto internacional, reconhecem expressamente que as principais vítimas das atrocidades “inimagináveis” praticadas contra homens, mulheres e crianças durante o Século XX, em verdade, violaram a consciência da humanidade.
Entretanto, é necessário destacar que os mais de cem Estados que ratificaram o Tratado de Roma e que reconheceram a jurisdição do TPI não o fizerem renunciando ao modelo tradicional da soberania que lhes dota do poder de decidir internamente como defender a sua segurança, sobretudo usando da força.
Como refere Mireille Delmas-Marty[2], tal questão ainda demonstra o lugar privilegiado da política frente ao direito. Essa é uma das razões que justifica a aplicação do problemático princípio da complementaridade ou da subsidiariedade da jurisdição do TPI relativamente às jurisdições penais internas. Parece ser justamente esse limite que, entre outros, esse espaço não comporta abordar nesse momento, tem impedido a efetiva responsabilidade dos Estados que violam persistentemente os direitos humanos.
Veja-se que a ausência de definição do que seja o “crime de agressão”, ao contrário da presença de definição dos crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, embora quanto a esses sejam conhecidos os intensos debates acerca de sua compreensão e aplicação concreta, demonstra essas derivas e ambiguidades da globalização e confirma a dificuldade de atuação da justiça humana. Sim, porque a ausência dessa definição, embora o direito internacional apenas autorize o uso da força em nome da legítima defesa ou da ingerência humanitária ambas, na prática, não isentas de toda crítica e reflexão, mantém os Estados em uma situação de permanente irresponsabilidade seja por ação ou omissão no que diz respeito à existência de graves crimes contra os direitos humanos.
Os conflitos armados ainda em pleno exercício neste início de ano na Síria, na República Centro Africana, no Paquistão, em Israel e Palestina, entre outros, são exemplos não desprezíveis dessa dura e desafiadora realidade e que impõem, política e juridicamente, severos desafios à aplicação da justiça penal internacional. Criminalizar a agressão “importaria uma verdadeira ruptura que suporia o reconhecimento de uma comunidade mundial política”, nas palavras de Delmas-Marty.[3]
Não seria mesmo utópico sujeitar os responsáveis pelas guerras sangrentas, que acompanham a história da humanidade, ao direito? Essa que é uma “luta” de outra natureza pode mesmo estar fadada ao insucesso.
Algumas sábias e poderosas pistas podem ser encontradas em Nietzsche e Freud cujas obras, embora em campos de análise distintos, permitem que se identifique uma comunidade de intuições voltadas não só a compreender o mundo e o homem.  Em sua exuberante obra “Mal-estar na civilização” Freud[4], mencionando, as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou a invasão dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e Tamerlão, ou na captura de Jerusalém pelos cruzados ou os profundos horrores da Primeira Guerra Mundial, destaca que os homens não são mesmo figuras gentis e sim são criaturas cujos dotes instintivos apontam para uma poderosa dose de agressividade.
É por isso que, segundo Freud, a civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle. Essa análise sombria, de fato, nos conduz a uma atitude pessimista, pois o conjunto de episódios atuais de violência praticada pelos Estados, por grupos armados, entre outros, demonstra que a despeito de todos os esforços para limitar os comportamentos humanos agressivos por meio do direito, a mão desse não tem alcançado os principais responsáveis.
Nesse sentido, resta que o próprio direito contribui para a persistência de tais dificuldades, seja porque, como é sabido, suas tradicionais estruturas mantêm-se fortemente ancoradas na matriz estatalista, seja porque os marcos normativos internacionais ainda contêm uma boa dose de ambiguidade no que diz respeito à clareza de sua aplicação, quanto à sua própria formulação e, quanto à competência de atuação das instituições internacionais.[5]
A par de repetir a adaptação ao cinema de modo sofrível, a saga bíblica de Moisés na condução do povo hebreu à terra de Canaã, Ridley Scott, diretor do filme que recentemente chegou às telas dos cinemas, “Exodus – Gods and Kings”, talvez teve por objetivo mais elevado chamar a atenção do público para a atualidade daquele episódio bíblico, tal como expressa a brutalidade da guerra que envolve Israel e Palestina, cujas principais vítimas são crianças, mulheres e velhos a demonstrar o embate entre a força da política e a força do direito, sem esquecer o profundo componente de infantilidade psicológica, reproduzido pelo delírio das massas, que os fundamentalismos religiosos de qualquer espécie provocam, como muito bem destacou Freud.[6]
Malgrado as dificuldades antropológicas e estruturais para debelar a barbárie humana por meio do direito, devemos crer em seu poder transformador. As conquistas representadas pela inserção do dever de respeito aos direitos humanos presentes nas cartas constitucionais e convencionais são irrenunciáveis e o maior exemplo desses avanços.
Mais uma vez a competência e capacidade de atuação do TPI é desafiada. Entre inúmeros motivos conhecidos e que não cabe aqui reproduzir, acerca da incapacidade dos líderes israelenses e palestinos em pôr fim pacífico ao seu conflito, responsável pelo extermínio de inocentes ao longo de décadas, é que no dia 2 de janeiro passado a Autoridade Palestina apresentou formalmente a ONU declaração de que pretende aderir ao Tratado de Roma e, assim, reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. O propósito, sabidamente, é complexo. Mas a ação mostra que os palestinos a par de submeterem-se às regras do Tratado de Roma e à jurisdição daquele tribunal, o que visam é uma possível responsabilização jurídica de Israel.
Esse é, de fato, um desafio para a ONU e para o TPI. Reconhecerá a ONU o “Estado” Palestino? Mas tendo já a Palestina assento na ONU, essa poderá ser uma condição suficiente para que sua pretensão de adesão ao Tratado de Roma seja aceita? E na hipótese de sua demanda chegar ao TPI, terá ele competência e legitimidade para processar eventual demanda contra Israel, na medida em que esse Estado não ratificou o Tratado de Roma? Mas se a jurisdição do TPI for afirmada, como determinar onde começa e onde termina sua competência territorial?
Se as respostas a essas perguntas são incertas do ponto de vista do direito, não se pode desconsiderar que, do ponto de vista da imaginação utópica, é preciso ousar, dando oportunidade ao “ainda não”, rompendo com as aquisições do passado, para apostar em um futuro melhor, mesmo que improvável.
Esse é o horizonte que se busca desenhar ante a emergência de reconfiguração do papel do sistema de justiça, sobretudo dos tribunais internacionais quando se está a tratar de solução dos conflitos produzidos pela globalização.  A resposta poderá estar na busca de objetivos humanos comuns.
Por essa via, pode-se reconhecer as ambiguidades e os desafios impostos à justiça penal internacional, o que não deve reduzir a nossa resistência à violência em nome da civilização humana, tampouco desconsiderar o papel que o direito deve ter para reduzir as ambivalências – e as crueldades – da globalização.
Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

[1] Versão em português disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm
[2] DELMAS-MARTY, Mireille. Résistir, responsabiliser, anticiper. Paris: Seuil, 2013, p. 67.
[3] Ibid., p.69.
[4] FREUD, Zigmunt. Mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29.
[5] DELMAS-MARTY, Mireille. Résistir, responsabiliser, anticiper., op. cit., p. 72
[6] Mal-estar na civilização, op. cit., p. 14.

“Timbuktu” é lá ou aqui? O sistema de justiça e a federalização dos crimes contra os direitos humanos

Por Jânia Maria Lopes Saldanha


Neste último final de semana assisti ao filme “Timbuktu” dirigido pelo cineasta mauritanês Abderrahmane Sissako e que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro. É sempre surpreendente como a verve talentosa de algumas pessoas consegue dizer muito com pouco. Esse é o caso. O filme retrata o drama recente vivido pela população da região do Mali que dá nome ao filme e que desde 1988 compõe a lista do patrimônio cultural protegido pela Unesco.
Sissako, sem música e sem muitas palavras, faz a denúncia incontornável da chegada de um grupo de jiadistas – fundamentalistas religiosos armados -, que tomaram o poder naquela região e impuseram à população local sua própria lei religiosa por meio de humilhações, violência e morte cotidianas, cruelmente ilustradas pela lapidação de um homem e de uma mulher não casados “legalmente” e pela pena de morte imposta a Kildane, um pastor que não teve direito de defesa e tampouco de produzir provas no processo. Em 2012 a imprensa internacional deu visibilidade à tragédia vivida pela população de Mali o que repercutiu positivamente em ajuda política e humanitária.
Ao primeiro olhar, as barbáries “humanizadas”, pois os atos são praticados em nome de Deus, parecem realmente inofensivas.  Entretanto, o processo de controle do governo e de suas instituições ao argumento da necessidade da prevalência da religião que, no caso de Timbuktu ocorreu de forma radical, ostensiva e rápida, ocorre hoje em muitas partes do mundo. Às vezes o processo transcorre lentamente, mas não de forma menos insidiosa e violenta.
Cuidadas as diferenças, é interessante analisar – e anotar – o que há de comum ou não entre os que tomam o poder por motivos religiosos e em nome dele cometem crimes contra populações civis indefesas e aqueles outros que os praticam, contra vítimas de igual natureza, em nome da democracia e da “segurança”, investidos do poder e do aparato estatal, mas que do mesmo modo infligem humilhação, violência e “pena de morte” sem devido processo legal, sem direito de defesa e sem prova. Essas duas práticas não são estranhas ao mundo em que vivemos, assim como não é incomum a fragilidade do Estado em debelar tais “assaltos” ao poder. É justamente essa fragilidade que poderá dar vazão à cooperação internacional ou à cooperação interna com vistas e debelar as causas da violência.
A obra de arte conduziu-me a refletir sobre a recente decisão da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça  que, no dia 10 de dezembro passado, no IDC – Incidente de Deslocamento de Competência nº 3, deferiu pedido do Procurador Geral da República para que fosse deslocada a competência para a Justiça Federal de dois inquéritos policiais e um procedimento inquisitivo envolvendo policiais acusados de cometer graves violações aos direitos humanos no Estado de Goiás pelo desaparecimento de Célio Roberto, Pedro Nunes da Silva e Cleiton Rodrigues e pela acusação de prática de tortura contra Michel Rodrigues da Silva.
O IDC está previsto no artigo 109, § 5º, da Constituição Federal e faz parte do conjunto de reformas do Poder Judiciário instituídas pela Emenda Constitucional nº 45/2004.  Esse dispositivo diz que “Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal”.
No caso concreto, o Ministro Relator Jorge Mussi[1] destacou a possibilidade de federalização dos crimes “como meio de reparo à suposta fragilidade das instituições”.  Como se vê, a Constituição da República estabelece dois requisitos para a federalização de crimes: a) quando houver grave violação de direitos humanos e; b) para assegurar o cumprimento de tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil seja parte.
No IDC 3 foi deferida[2] a participação processual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil na condição de amicus curiae. A petição apresentada destacou que todos os casos envolvendo violação de direitos humanos no Estado de Goiás e que foram relatados ao Procurador Geral da República tinham uma característica comum: a falta de acesso à justiça, uma vez que inúmeros casos sequer tiveram instauração de inquérito policial ou, se tiveram, incidentes processuais variados impediram ou dificultaram a responsabilização dos culpados.
De fato, o caso demonstra a violação de inúmeros direitos humanos, dentre eles o do acesso à justiça. A petição relata que o então CDDPH – Conselho de Direitos da Pessoa Humana – havia sido oficialmente informado pela Presidência da República de que em 92% das denúncias apresentadas contra o Brasil perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, uma das alegações é a denegação de acesso à justiça.
Em nome do princípio federativo a Terceira Seção do STJ registrou a excepcionalidade do deferimento do IDC. Sem dúvida, a Constituição Federal apresenta a estrutura do sistema de justiça brasileiro e é sabido que se trata de sistema composto de instituições estaduais e federais. As manifestações do Ministério Público estadual de Goiás, no caso em comento, chamam a atenção para a sua existência.
Contudo, em um mundo em que internacionalização das relações humanas trouxe como consequência o contato entre diferentes sistemas jurídicos, e os códigos culturais, embora se mantenham, já não podem renunciar, tampouco ignorar, a permeabilidade ao exterior, o direito interno sofre o influxo do direito internacional. Como essa é uma via de mão dupla, o internacional também recebe a influência do nacional. Assim, no campo do direito constitucional um duplo processo emerge, o da constitucionalização do direito internacional e o da internacionalização[3] do direito constitucional. Esses movimentos circulares de abertura recíproca que colocam sob interrogação os limites impostos pelas fronteiras nacionais bem como a propalada autonomia do direito internacional, conduzem, inevitavelmente, ao reconhecimento de que o nacional não se sustém sozinho, quanto parece “ser nacional o futuro do direito internacional”[4] diante da sua influência sobre as ordens nacionais. O campo dos direitos humanos e sua necessidade de proteção é o que mais retrata a superação dessas fronteiras e o que exige das instituições nacionais atitudes radicais para a efetivação de sua proteção, sob pena de responsabilidade internacional dos Estados.
Mesmo que à míngua de um marco normativo regulamentador, já anteriormente destacado pela Ministra Laurita Vaz na oportunidade em que decidiu a ADC nº 2, não era mesmo possível outro caminho que não o do deslocamento da competência, ante a presença dos requisitos constitucionais para tanto, ou seja, a grave violação de direitos humanos e a fragilidade das instituições do Estado de Goiás em investigar, processar e julgar os crimes praticados, o que denota falta de cumprimento das responsabilidades internacionais assumidas pelo Brasil. É bom referir ao público leitor que o Relator da ADC 3 tomou o cuidado de determinar fosse colhida prova no referido incidente sobre a incapacidade do Estado goiano em processar e responsabilizar os reputados autores dos crimes, agentes públicos do próprio Estado de Goiás.
Deve ser destacado que o compromisso convencional assumido pelo Estado brasileiro em favor da previsão, proteção e defesa dos direitos humanos, bem como pela responsabilização dos responsáveis pela violação existe em um quadro de cooperação internacional imposta pela internacionalização desses direitos quanto pela sua violação para além dos espaços nacionais. Ao criar o IDC para federalizar os crimes contra os direitos humanos, desde que presentes os requisitos constitucionais, o legislador brasileiro não pretendeu violar competências dos Estados-membros ou fragilizar suas instituições.  A mesma lógica existente no plano internacional, orientada pela universalização dos direitos humanos e pela necessidade de sua proteção prevalece no plano interno. Com isso, os órgãos federais serão chamados a agir ante a necessidade de cooperação com as instituições estaduais fragilizadas em sua atuação por razões diversas sejam estruturais, sejam funcionais.
É necessário voltar ao início. Tanto nas ações dos fundamentalistas religiosas em Timbuktu, quanto nas dos agentes de segurança pública acusados da prática dos crimes contra os direitos humanos – tortura, desaparecimento e homicídio – de vítimas civis, o que se percebe, por um lado, são ações cujos efeitos repercutem para além das fronteiras locais e nacionais. Por outro lado, tais ações têm em comum o exercício ilegítimo, ilegal e arbitrário do poder político, ora exercido – e confundido – em nome do poder religioso, ora exercido em nome da garantia da “ordem” e da “segurança” eleitos como valores democráticos.
A violação do acesso à justiça – ou ao “recurso efetivo” – às vítimas de violações de direitos humanos ou aos seus familiares, como é sabido, é impedida pelo texto da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Desse modo, dada a vinculação de todos os agentes dos sistemas de justiça nacionais à coerência e integridade do direito convencional em matéria de direitos humanos, a Corte Interamericana destaca o dever de os Estados respeitarem integralmente o Pacto de San Jose da Costa Rica quando os direitos em jogo são tão fundamentais que sua restrição ou privação afeta os princípios mínimos de respeito à dignidade humana”[5].
A essencialidade e fundamentalidade dos direitos humanos reiteradamente reconhecida e reafirmada pela Corte nega, no entanto, o reconhecimento de que os Estados podem ser discricionários, porquanto os vincula a dotar esses direitos de substancialidade alinhada à compreensão que deles é feita pela comunidade de intérpretes. Por essa razão e para evitar a responsabilidade internacional do Brasil é que a federalização dos crimes fazia-se necessária. Presentes os requisitos constitucionais e convencionais, a integridade do direito não deixaria mesmo outro caminho decisório ao STJ.
Um último registro. A decisão do STJ no IDC nº 3 faz com que pensemos nas transformações do papel dos Tribunais – sejam tribunais “superiores”, “constitucionais” ou “internacionais de direitos humanos” (em seu sentido amplo) – no contexto do processo dinâmico e evolutivo da internacionalização dos direitos humanos. Seguramente esse processo não se contenta em incluir um interlocutor novo para os juízes, ou seja, o “auditório universal” de que já falara Chäim Perelman. Ele coloca em causa, também, os fundamentos jurídicos e culturais sobre o quais os sistemas de justiça tradicionalmente foram construídos. A intervenção do Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, que é membro do hoje CNDH – Conselho Nacional de Direitos Humanos, na condição de amicus curiae, mesmo à míngua de previsão legal, mas justificada em nome da natureza analógica do direito, revela não só a abertura  do Tribunal Superior ao diálogo com a sociedade quanto a necessidade de contato para construir democraticamente suas decisões. Sem dúvida, representada pelo Conselho Federal da OAB, essa é uma vitória da sociedade.
Se infelizmente é possível dizer que a violência praticada em Timbuktu e em Goiás pode ser “qualquer lugar”[6], é preciso acreditar que pela via do processo democrático – ainda que não seja a única – e pela cooperação, seja possível caminhar para a garantia de efetividade dos direitos humanos.
Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

[1] Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/sala_de_noticias/noticias/ultimas/STJ-desloca-compet%C3%AAncia-para-a-Justi%C3%A7a-Federal-de-crimes-graves-contra-direitos-humanos-cometidos-em-Goi%C3%A1s. Acesso em 21 de dezembro de 2014.
[2] Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=31303781&num_registro=201301380690&data=20130919&tipo=0&formato=PDF
[3] Sobre o tema da internacionalização do direito ver DELMAS-MARTY, Mireille,  Études juridiques comparatives et internationalisation du droit, Paris: Collège de France, 2003.
[4] Slaughter, Anne-Marie e Burke-White, William, “The future of International Law is Domestic (or, The European Way of Law)”, In: Harvard International Law Journal, Vol. 47, Number 2, pp. 327-352, 2006. 5 Se esse futuro “nacional” do direito internacional deriva da necessidade de os Estados afinarem suas leis internas com os ditames daquele, sobretudo quando se tratar de direitos humanos, também é no campo das políticas internas que o fenômeno desabrochará. Nesse sentido, o futuro nacional do direito internacional dependerá de sua habilidade de influenciar, reforçar e servir de base às ações dos atores estatais e às políticas internas. Como imaginam Slaughter e Burke-White, as regras internacionais e
[5] Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Opinión Consultiva OC-18/03: Condición Jurídica y Derechos De Los Migrantes Indocumentados, 2003, p.64.
[6] Disponível em: www1.folha.uol.com.br/…/1224785-timbuktu-pode-ser-qualquer-lugar.s…