segunda-feira, 25 de maio de 2015

Quem tem medo da integridade da Constituição?

Por Jânia Maria Lopes Saldanha

// Colunistas Just


Tão velha quanto o significado que atribuímos à justiça é a ideia sobre a existência de um juiz imparcial. A independência, bem como a imparcialidade, são sua imagem e sua força simbólica.
A história da justiça mostra que tais atributos foram ora associados à imagem de uma justiça vendada que, ao carregar a balança e a espada, personificava o equilíbrio e a força. Mas também uma outra justiça era representada, – a justitae oculus – de olho único, bem aberto, que tudo podia ver e que encarnava a concepção da eterna vigilância. Em outras palavras, expressava a ideia de que “it is the eye of justice that notices all things”.  A “Justitia” com dois olhos bem abertos, de Giovanni Andreas de Ferrari, datada de 1620, retrata essa segunda concepção simbólica da justiça.
Diante dessas representações, nos vemos em um paradoxo: como um terceiro pode manter-se distante, livre de vínculos pessoais e políticos, tal como sugere a imagem vendada e, por outro lado, tudo ver e tudo estar consciente?
A contradição rompe com a esperança de que a justiça seja perfeita, porque ela existe e é fruto das imperfeições humanas em um mundo destituído da pureza e da separação, o mundo dos híbridos. Bruno Latour [1 lembra que “nós jamais fomos modernos”, dado que as separações disciplinares, por exemplo, não passaram de artificialidades que sucumbiram ao cruzamento e a permeabilidade entre saberes. Seguramente a justiça não escapou dessa “crise da razão” pura, pois o real “não é mais que incompletamente irracional” [2], razão pela qual a hermenêutica filosófica, a filosofia hermenêutica e a teoria do direito como integridade dizem bem sobre a imparcialidade e a independência dos juízes!
Em um mundo cada vez mais globalizado, cuja internacionalização do direito é um processo não só dinâmico e complexo quanto inexorável, a discussão sobre a imparcialidade e a independência dos juízes que compõem os tribunais internacionais está ao centro dos debates. Assim, uma abordagem ampla – correndo todo o risco de ser acusada de superficial -, identifica aquelas duas características quando haja respeito ao processo equitativo como estabelece o art. 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assim, cada decisão da justiça é o lugar da reflexão sobre o que quer dizer hoje uma sociedade justa, tomando-se como referência as razões de decidir adotadas pelos juízes.
Com efeito, uma das questões centrais ao debate sobre independência/imparcialidade é a forma de acesso dos juízes aos tribunais. Questão importante, que, é sabido, não conhece uniformidade entre os tribunais internacionais e nacionais, especialmente com relação a estes últimos no que diz respeito ao acesso às cortes supremas e às cortes ou tribunais constitucionais. Também nesse campo, as diferenças encontram justificativa no horizonte da cultura e dos padrões democráticos. Entretanto, parece possível afirmar que a elevação do acesso à justiça à condição de um princípio comum na maioria das democracias de hoje – com origem em fonte convencional e constitucional – tem provocado algumas tendências e harmonizações no que diz respeito aos critérios de escolhas dos juízes.
No âmbito dos tribunais internacionais, percebemos leves diferenças entre a duração dos mandatos, sua reeleição e a forma de escolha. Veja-se que na Corte Europeia de Direitos do Homem a duração dos mandatos é de 9 anos, sem reeleição, com limite de idade de 70 anos, escolhidos por eleição em voto secreto. Na Corte Interamericana de Direitos Humanos, a duração dos mandatos é de 6 anos, com uma reeleição e escolha por voto secreto. Na homóloga africana, a duração dos mandatos é de 6 anos, com uma reeleição, votação secreta e garantia de paridade de sexos. Os juízes da Corte Internacional de Justiça da Haya são eleitos para mandatos de 9 anos. Como se vê dos textos constitutivos desses tribunais, qualidades relativas à experiência profissional e ao conhecimento jurídico são mais relevantes para que alguém venha a compor tais tribunais. O limite decorrente da idade, seja para o ingresso, quanto para o fim dos mandatos, não é fator preponderante.
No âmbito dos tribunais nacionais, pode-se identificar harmonização quanto ao critério da limitação temporal para o exercício das funções. Veja-se que, na Europa, os juízes das cortes constitucionais exercem mandatos sem renovação. Esse é o caso, por exemplo: a) da Alemanha (12 anos); b) Espanha (9 anos); c) França (9 anos); d) Itália (9 anos) e; e) Portugal (9 anos). As formas de ingressos variam de um país a outro entre a nomeação partilhada entre os poderes – Presidente da República, Senado, Câmara dos Deputados e órgãos da magistratura. Na América Latina, o quadro é um pouco diferente. Perceba-se, por exemplo, que: a) na Argentina, o cargo é vitalício, com renovação da nomeação aos 75 anos, podendo ser renovado indefinidamente; b) no Chile, o cargo temporário é de 9 anos; c) na Colômbia, o cargo temporário é de 8 anos sem reeleição; d) no México, o cargo temporário é de 15 anos.
Os critérios de acesso possuem um perfil harmonizado, ou seja, em quase todos esses Países, à exceção da Colômbia, a nomeação/indicação é feita pelo presidente da república com a posterior manifestação do Senado Federal. Não há indicação, à exceção do México, quanto ao limite de idade para acesso. Também não há limite para o fim do exercício do cargo, seja porque esse já tem prazo pré-definido, quanto porque as Constituições numeram motivos que justificam o fim do mandato antes do prazo previsto.
O processo de criação da PEC 42/2003, transformada na PEC 457/2005 – a mal denominada “PEC da Bengala” – , culminou na EC 88/2015, que mostrou não apenas o quanto essa reflexão não foi realizada no Brasil mas, sobretudo, reforçou infelizmente toda a fragilidade de nossa democracia. Sem debate popular pelos canais previstos em nosso sistema constitucional, sem a atualização de um texto nascido no ano de 2003, e adotando velocidade não usual ao processo legislativo praticado por nossa Câmara de Deputados, o limite máximo de idade dos juízes dos nossos tribunais superiores sofreu modificação para satisfazer, como se tornou público e notório, a ingênua pretensão de impedir novas nomeações para o STF pelo governo que hoje exerce o poder da República.
Ora, nos sistemas em que o início desse processo de escolha é de competência do presidente da república, a mudança do limite máximo de idade, tal como foi feita no Brasil para impedir que o governante no poder ainda tenha possibilidade de escolher futuros ministros do STF, não mudará a regra do jogo. Com isso, a passagem do tempo mostrará que nosso País, no futuro, poderá voltar a experimentar a renovação de nosso tribunal maior por iniciativa de um mesmo governante. Quem governará o tempo? Quem governará os rumos da política? Veja-se que, na história recente do México, os 11 juízes que compõem a Corte Suprema da Nação foram nomeados por um único presidente. Não se tem notícias de que a Constituição mexicana tenha sofrido modificação por causa disso. São as regras do jogo democrático.
Assim, o que deveria ter sido pauta de profundo debate nessa questão – mas não foi – é a dupla face que a matéria envolve: a) a banalização das emendas constitucionais e a ausência de um “sentimento constitucional” que proteja a Constituição das mudanças por interesses “da hora”, algo que deveria ser um dos primeiros imperativos da função legislativa; b) o sistema de acesso dos juízes aos tribunais e se, considerada a realidade brasileira, é possível tracejar um caminho entre esse sistema e a imparcialidade e independência dos juízes.
O compromisso do Poder Legislativo com a integridade da Constituição Federal é o mesmo que se exige – e se espera – do Poder Judiciário e do Poder Executivo. E integridade também significa “salvar” a Constituição de “reformas” que  fragilizam sua condição de texto fundamental. Seguramente não se constrói cultura democrática quando a emenda à Constituição não decorre do debate público amplo e quando a matéria a ser reformada não envolve os grandes destinos da Nação. Embora o sistema brasileiro de nomeação e permanência dos juízes do STF ande, de fato, na contramão da maioria dos sistemas judiciários internacionais e nacionais, na perspectiva dos interesses do povo brasileiro, qual foi o significado dessa mudança? Quantas outras – além das 88 [3] – poderão surgir no horizonte próximo da nossa tão mal tratada democracia?
O problema pode estar associado ao protagonismo dos juízes e, em democracias como a brasileira, ao protagonismo do tribunal a quem cabe fazer o controle final da constitucionalidade das leis. A interrogação faz lembrar de uma interessante passagem de Boaventura de Sousa Santos, na qual ele diz que o modelo do desenvolvimento de matriz neoliberal, assentado nas regras de mercado e nos contratos privados, para que estes sejam cumpridos e os negócios tenham estabilidade, um judiciário eficaz e rápido é realmente indispensável. Denominado como hegemônico, esse modelo sempre foi simpático aos que buscam manter os patamares das relações econômicas, políticas e sociais no Brasil, de modo a satisfazer interesses de poucos.
Mas é esse mesmo protagonismo do judiciário que muda sua performance e passa a ser contra-hegemônico. O déficit na concretização dos direitos fundamentais, expresso, por exemplo, na precarização dos direitos econômicos e sociais – e na conscientização de sua existência  – elevou exponencialmente as demandas da justiça.
Entretanto, a necessidade de combate sério à corrupção imprimiu, nos últimos 15 anos, movimentações diferentes na esfera de atuação do sistema de justiça como um todo – polícias, ministério público, advocacia e judiciário –, em cujas mãos chegaram fatos praticados por atores envolvidos em redes globais de criminalidade. Transformação da matéria e confrontação com novos “atores”. Nesse sentido, como referido por Boaventura, os tribunais passaram a julgar “para cima”. Demandados poderosos passaram a sentar no banco dos réus dos processos penais, dos processos de improbidade e de ações de indenização.
A imparcialidade e a independência dos juízes, ambos essência da justiça, não mudarão com uma mudança constitucional de ocasião, que mais expressa o medo do equilíbrio das decisões adequadas e da vigilância da integridade da Constituição.
Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

REFERÊNCIAS
[1] LATOUR, Bruno. Nous n’avons jamais été modernes. Essai d’anthropologie symétrique. Paris: La Découvert, 1997.

[2] MORIN, Edgar. L’aventure de la Méthode. Paris: Seuil, 2105, p. 148.
[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/quadro_emc.htm